Crônica

NÃO ERA O SPUTNIK

Fim de tarde. Entre cinco e meia e seis horas, quando o sol já perto do Japão dourava a ponta das palmas dos carnaubais mais a oeste com os raios de despedida de mais um dia, alguém, do meio da rua gritava: lá vai!

De repente a rua se enchia de gente. Alguns demoravam a localizar, para a impaciência dos que tinham enxergado primeiro e diziam: olha mais para ali! Todos olhando para o céu. Finalmente, cada um identificava o pequeno ponto luminoso deslocando-se vagarosamente no sentido leste/oeste. Já era parte da rotina dos finais de tarde.

Não era pássaro, nem avião, nem o Superhomem. Provavelmente um desses primeiros artefatos lançados pelas potências que brigavam pela hegemonia na corrida espacial e que percorria a atmosfera terrestre em ciclos periódicos, cruzando nossa região justamente naquela hora.

Alguém falou que era o Sputnik. Nunca se soube. O satélite russo fora para o espaço em 1957. Naqueles anos de 1961, 1962, soviéticos e americanos já passeavam pela periferia do planeta com várias daquelas engenhocas. Por ter sido a primeira e, talvez também, pela sonoridade do nome, o Sputnik estava muito presente na cabeça das pessoas e, para algumas, o nome servia para qualquer objeto lançado ao espaço sideral, assim como o Chiclets ou o Bombril para as respectivas categorias de produtos.

Passados dez ou mesmo quinze anos do final da Segunda Guerra Mundial, até aviões comuns às vezes assustavam algumas pessoas, gente cuja formação restrita ao básico fazia com que juntassem informações vagas à própria dificuldade de entendê-las, pela simplicidade intelectual, para imaginar que o conflito continuava em algum lugar e associar um detalhe daquela aeronave que passava com os bombardeiros dos quais também só ouvira falar, a respeito do que acontecia lá longe, na Europa. Isso sem falar nas histórias sobre discos voadores, que eram uma certa novidade. Mas, discos voadores eram como lobisomens ou mulas sem cabeça, só apareciam de noite. E aquele objeto luminoso rondava pelo fim da tarde.

Então, apesar de ninguém saber o que era, o tal objeto não assustava e até divertia. Era uma quase festa diária, ao entardecer. Olhares voltados para o alto, forçando a coluna cervical ao limite da possibilidade de um torcicolo. Depois, todos se recolhiam às suas casas. Após o jantar uns iriam ao cinema, outros às igrejas, outros aos bares. A maioria ficaria em casa para ver passar apenas a noite de uma cidade acostumada a uma rotina calma, longe de guerras, quentes ou frias. Talvez ainda voltassem a olhar o céu em busca da Lua, das Três Marias e da Estrela Dalva, que essas eram velhas conhecidas.

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