ARTIGO

E SE EU FOSSE UMA MÚSICA?

GISELE FERREIRA DE LIMA

A criação do universo, seja em qualquer versão, na entonação de uma palavra ou numa grande explosão, tem na sua essência, movimento e vibração. Vibração que é matéria prima do som e que acreditamos estar presente em alguma medida em tudo que há no universo: dentro do nosso corpo, nas batidas do coração, no chocalho da serpente, na cura da escuridão, nas vibrações do pensamento, dando às ações o sustendo e na vida a atuação.

O universo, a sociedade os sujeitos não formam uma grande música, ou paisagem sonora? Acaso cada indivíduo, não dá sua contribuição a partir das suas interações com os elementos do mundo, sobretudo consigo mesmo? Que música nossas vibrações tem ajudado a compor no mundo que lhe cerca?

Pensar sobre essas questões, se imaginando uma música, ou melhor, um ritmo, melodia, harmonia, se faz necessário ouvido sensível, imaginação ousada e alma sonhadora. É essa alma sonhadora e fantasiosa que me permite por diversas vezes questionar: se eu fosse uma música, que melodia teria? Como eu ressoaria no mundo? O tornaria mais belo? Mais simples? Mais resistente? Leve? Agradável? Justo? Ético? E a harmonia do mundo, como ressoaria em mim? Sufocante? Modeladora? Alienante? Inquietante, tranquilizante, libertadora?

Relacionar a arte a própria vida não tem sido um pensamento novo.Platão, FriedrichNietzsche e mais recentemente Michel Foucault; têm fortalecido ao longo dos tempos a ideia de que a arte não está separada da nossa vida cotidiana. Sugerem que nossas vidas deveriam ser obras de artes. Platão nos diz que “um homem bom é o único músico excelente, pois produz a perfeita harmonia, não com uma lira ou com outro instrumento, mas com a vida”.  Para Nietzsche, “a arte deve antes de tudo e primeiramente embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos refreia, cria formas de trato, impõe aos indivíduos leis do decoro, do asseio, de cortesia, de falar e calar no momento oportuno”.  É por um estilo de vida refinado e afinado que Foucault questiona, “o que me surpreende é que em nossa sociedade a arte esteja relacionada apenas aos objetos e nunca aos indivíduos e à vida; e, também, que a arte esteja num domínio especializado, o dos experts que são artistas. Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte?”.

Se imaginar uma música não é se enxergar uma obra de arte? Não é assimilar a vida humana como instrumento em afinação. Não é refinar suas interações e manifestações em sociedade? Quem sou eu, tu, nós, vós senão melodias vivas que se movimentam, no mundo, na sociedade e produzem um grande som?

Nosso pensa, olhar sobre a música deveriam ir além de valores, notas, linhas, símbolos, ritmos, harmonia, melodia, etc. Deveríamos enxergar nossa própria criação… Deveríamos enxergar uma metáfora que nos ajudaria a compreende a vida, a sociedade, os sujeitos (o outro), e, sobretudo, a si próprio, se permitindo pensar e agir sobre si mesmo num produzir-se contínuo, transformando sua vida numa obra de arte.

Tem sido assim, uma constante busca por um novo olhar e pensar musical, desde minha adolescência quando por tanto insistir, ganhei um violão de minha mãe. Eu era “adolescentemente” fã da cantora colombiana Shakira, então precisava de um violão (caso de vida ou morte) para expressar meu amor, paixão, admiração, nem sei bem o que era aquilo.

Desde esse encontro casual e íntimo com a arte musical, tenho nutrido uma admiração e respeito pela música. Aprendi a defender com veemência suas funções formadoras e construtoras para o desenvolvimento do indivíduo. Acredito que quanto mais íntima e complexa for à relação do sujeito com a música, mais chances ele terá de se relacionar com ele mesmo e se produzir eticamente, estando dispostos a problematizar seu repertório, reconhecer outros timbres, ser outro tom, ter outro ritmo e soar harmonicamente na sociedade.

Nas muitas vibrações da vida, encontrei o acordeom. Esse universo sonoro e complexode melodias, harmonias e ritmos, que recebe do fole o sopro de vida. Instrumento que tem tornando meus dias cansativos, prazerosos, repetitivos, lentos, persistentes, esperançosos e poéticos. Cheios de fantasias e relações que transcendem as vibrações sonoras.

Percebo nos baixos as harmonias, ou por que não poderíamos imaginar a sociedade? Com suas regras, imposições, alienações, valores, crenças, verdades. Com seus conflitos, com suas dissonâncias, consonâncias, com sua complexidade, simplicidade, com suas relações mútuas e interdependentes… No teclado ouvimos a melodia, ou seráque não ouvimos o próprio sujeito? Com sua liberdade, resistência, variações, doçura, com suas arrogâncias, monotonias, escalas… E fole? Não seria o pulmão, a alma do instrumento? Dele vêm às vibrações que dão origem aos sons, as notas, os acordes. As canções que nos tocam, inspiram e alegram. Nessa perspectiva, me parece que quanto mais domino esses três aspectos do instrumento mais domino e conheço a mim mesma.

Relembro a dificuldade diária de juntar as duas mãos nas execuções das músicas. Uma precisa esquecer-se da outra e ao mesmo tempo saber exatamente o que cada esta a fazer. Baixos e teclas. Possuem uma autonomia relativa e se co-autoproduzem. Estão geralmente dentro de uma tonalidade, de um conjunto de regras, mas isso não os impedem de serem agradáveis, coerentes, refinados e, sobretudo, éticos. Possuem forças de resistência para que o desgoverno, desafinação e desarmonia do outro, não gerem um completo caos sonoro. Estão sempre permissivas a serem outras músicas, terem outros ritmos, dedilhados… Estão dispostos a ressoar todos os ritmos e estilos, a contemplar a beleza do outro, a silenciar-se, e ecoarem sons fraternos e solidários. Acaso a nossa vida cotidiana não possui relações semelhantes? Acaso não deveria ser também assim a relação sujeito e sociedade?

Diferente disso, a sociedade pós-moderno nos soa como uma música individualista, fragmentada e desumana, como se seus elementos tivessem perdido o caráter complementar, indissociável e interligado a ele inerente. A desarmonia social globalizante e simplificadora, ressoa como um brado retumbante. E nós onde estamos?

Em algum lugar, onde o fole não nos alcança, onde os baixos são impiedosos e mecânicos, as melodias arrogantes e industriais… Em algum lugar exigindo do mundo um som, que não se sabe ecoar… Onde a existência nem é obra nem arte, onde se imaginar uma música é loucura…


A cantora, compositora e musicista Giselle Ferreira de Lima (Gisele Lima) é pesquisadora e especialista em pedagogia musical infantil e ocupa a cadeira 34 da AFLAM, que tem como patrona a musicista Hulda Nunes da Paz. É graduada em música pela UERN, com o trabalho de conclusão de curso intitulado As funções sociais da educação musical em ONG’s. Estuda a exploração da arte e da cultura enquanto campo de atuação do educador musical.
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