Entrevista

Conversa da Semana com Marcus Vinícius

O professor e escritor mossoroense Marcus Vinicius lança no próximo dia 24/7, o seu quarto livro, “Contos da boca da noite”. Vinicius, que também é contador de histórias e assessor pedagógico da Décima Segunda Diretoria Regional de Educação e Cultura (12ª DIREC) é graduado formado em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), sendo pós-graduado em Psicologia Escolar da Aprendizagem e Docência do Ensino Superior. Esse é o quarto livro do escritor, que escreveu ainda “Palavras ditas” (poesia, 2009 – Coleção Mossoroense);  “Uma história bem contada (infantil, 2019 – Queima Bucha) e  “O auto da mula sem cabeça” (2021 – Queima Bucha; Prêmio Fomento Maurício de Oliveira). Suas outras obras livros serão lançadas até final do ano pelo escritor, e também foram contempladas pela Lei Aldir Blanc por meio de projetos de artistas parceiros. Marcus Vinicius também já publicou textos em coletâneas da Academia Mossoroense de Letras (AMOL); e o artigo “Mulheres às margens” em ebook lançado pela UERN, além de outras produções literárias pela UERN e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O escritor conquistou o 1º lugar em Concurso de Poesia, e em 5º lugar no Concurso de Contos de Nísia Floresta, com texto que foi publicado em livro de cordel. Nessa entrevista, Marcus Vinícius fala de questões relacionados à literatura, cultura, leitura e educação, entre outros temas. Leia na íntegra:

Por Márcio Alexandre

PORTAL DO RN – Nos fale sobre “Conto da boca da noite”. Em que ele é inspirado?

MARCUS VINÍCIUS – Contos da Boca da noite são histórias do tempo em que não existia energia elétrica, a escuridão e o medo da noite eram ingredientes para o fascínio do imaginário popular. São enredos arraigados de encantamentos, de fatos fabulosos, de pactos com o capeta, de coisas inventadas pelas línguas tagarelas soltas por aí. A inspiração se deu pelas memórias da infância, de vivências com idosos, das impressões acumuladas na estrada da vida.  A influência também de leituras feitas de obras de autores nacionais e regionais. Ler Câmara Cascudo e a tradição oral; ler Jorge Amado e toda tradição dos tipos comuns registrados em suas obras. Ler Alencar e absorver a forma lírica que ele vai tecendo em suas narrativas… Enfim, a inspiração é construída ao longo de tantos fatores que se entrelaçam nesse processo de construção Literária.

PRN – Esse é o seu segundo livro centrado em questões ligadas à cultura popular. Há uma razão especial para isso?

MV – Sim. É uma questão de estilo e identificação com a cultura dos nossos iguais. O universo da cultura popular é instigante. Descobrir essa poética que costura as falas, os gestos, as impressões das situações subjetivas e coletivas. Sou fascinado pelo registro das crendices, das religiosidades, do espontâneo, da linguagem desprovida de tantas regras, dos mitos e das manifestações livres, sem amarras e limitações por padrões sociais determinados. A cultura popular é expansiva, viva, alegre, sincrética, arraigada de uma ancestralidade que me salta dos olhos e do coração o desejo de mergulhar nesse universo tão encantador.

PRN – Nesse aspecto, como o senhor avalia a situação da cultura em nosso país, especialmente no que diz respeito ao apoio governamental às manifestações culturais brasileiras?

MV –  A cultura passa por retrocesso, assim como todos os demais segmentos e instituições no Brasil. Não temos mais um Ministério da Cultura, apenas uma Secretaria Especial de Cultura. O que está salvando o setor cultural  é a lei emergencial Aldir Blanc, de iniciativa da deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ). A Lei aqueceu as nossas expectativas, o setor cultural conseguiu enxergar uma luz no final do túnel. Posso falar a nível de cidade e de Estado. Os processos nem sempre são os mais democráticos; os acessos nem sempre são para todos e todas, contudo, precisamos arriscar e acredito que seja por esse caminho que os artistas estão trilhando: arriscar nas possibilidades que vão aparecendo. Houve a abertura de editais para todos os setores, quem conseguiu fazer um bom projeto e estava com a documentação exigida toda legalizada, conseguiu aprovar seus projetos.

PRN – O senhor também é contador de histórias. Foi possível trabalhar com isso nesse contexto pandêmico?

MV – Não foi. A contação de história é algo de olhar olho no olho, de receber a energia da plateia, do interlocutor. A pandemia nos tirou essa possibilidade. Nossas vozes foram caladas e todo o corpo ficou na quarentena. Certo dizer que até tentamos aquecer o coração de alguém do outro lado da tela do computador ou na ponta da voz do celular, mas nada de trabalho, apenas iniciativa de não deixar as histórias mofarem, criar teias de aranha, ficarem largadas por aí sem vida.

PRN – Você está lançando sua quarta obra literária. Qual estímulo para escrever num país em que a leitura não é o forte para a maioria da população?

MV – É preciso ser resistência, fazer o enfrentamento, criar/construir nossas utopias. Assim com o riso, o ato de escrever, para mim, é um ato de resistência, de coragem, se não se entregar, de dizer que não desistimos do sonho de viver em uma sociedade mais educada, mais informada, mais humana, mais pautada na derrocada da ignorância. Eu sempre fui de não aceitar calado as atrocidades da vida. Sempre fui de plantar esperança e colher gratidão. Se alimentar de Paulo Freire causa isso na gente. O conhecimento modifica o homem, o homem transforma a sociedade. Podemos não ser uma grande nação de leitores, mas temos leitores, pessoas que deleitam leituras, se alimentam de livros… É para essas pessoas e esses sujeitos que alimentamos o nosso ego e seguimos produzindo.

PRN – Como o senhor vê a política do governo brasileiro de taxar livros e zerar impostos de armas num país em que a média de livros lidos por cada brasileiro é de 2,43 obra por ano?

MV – O que esperar de um sujeito que não vê, não ouve, não sente e não pensa? Não consegue nem enxergar um palmo além do nariz? Vivemos o momento do absurdo, da ignorância e da alienação. Não acredito que violência se combate com ações violentas. Essa ação, para mim, é de extrema violência e violação do direito à plena cidadania. As armas matam, os livros salvam. Um governo genocida que ignorou toda a pandemia, negligenciou tantas medidas de combate à transmissão de um vírus tão agressivo, acredito que não foi surpresa essa medida. Infelizmente, livro não dá votos, não é mesmo?

PRN  –  É à escola que cabe uma grande parte da responsabilidade por termos uma população ledora, mas os governos tem feito iniciativas que contribuam para isso?

MV – A escola sempre fez/faz a sua parte. Muitas iniciativas são feitas pelas escolas públicas, falo com propriedade das escolas públicas estaduais. As salas de leitura, as bibliotecas, os projetos de leitura, as feiras de livros, os programas de livros didáticos e paradidáticos que chegam às escolas são iniciativas. O que vejo é que a escola não pode ter para si essa responsabilidade sozinha. A leitura e os incentivos precisam estar em todos os segmentos da sociedade. Existem iniciativas, que não são de agora, são iniciativas de governos mais populares e democráticos que fazem a diferença até hoje nas escolas: OLP (Olimpíada de Língua Portuguesa – 7a edição);  Concurso do Jovem Senador e Parlamento Jovem…Iniciativas que instigam a leitura e a produção textual. A nível de Estado, acredito que falta uma lei e estratégias para trabalhar mais a literatura potiguar nas escolas. Nós, escritores, ainda somos invisíveis. As escolas compram nossos livros nas feiras do livro, mas as obras ainda não têm lugar de fala, espaço de existência nas nossas escolas. Ainda precisamos de estratégias e políticas para que o nosso produto seja mais conhecido pelas nossas comunidades.

PRN -A pandemia afetou todos os setores da vida em sociedade, mas parece que a maior cobrança sobre retorno presencial recai sobre a educação que, ao contrário do que muitos propagam, foi o setor que praticamente não parou. É possível imaginar por que razão isso acontece?

MV – Essa situação é histórica. Desde quando os e as profissionais da educação foram, de fato, valorizados? Vistos de verdade como profissionais competentes e comprometidos com os processos de ensino e aprendizagem? A sociedade, de um modo geral, sempre tratou com desdém a classe dos educadores. Esse é mais um ataque, mais uma agressão, mais uma forma de difamação contra profissionais que nunca deixaram de trabalhar. Nesse contexto de pandemia, todos e todas tiveram de se reinventar:  aprender novas línguas, apropriar-se das ferramentas tecnológicas, abrir a privacidade de nossas casas, investir em equipamentos e internet, planejar as aulas de outras formas, aprender a trabalhar de forma remota, outra forma de enxergar a sala de aula.

PRN – Aliás, repercutiu muito uma fala do deputado Tomba Faria (PSDB) que afirmou que os professores estão há 1 ano em 9 meses sem férias. Declarações dessa natureza demonstram desconhecimento ou apenas vontade de se capitalizar politicamente?

MV – Acredito na maldade humana, no discurso de ódio e na intolerância. São três coisas que vejo nesse discurso. À parte isso, sinto a falta de empatia com uma classe de trabalhadores que nunca parou, de fato, nunca esteve de férias coisa nenhuma. Professores e professoras não são culpados pelas desigualdades sociais e falta de distribuição de renda e acesso aos bens necessários para uma vida mais digna e cidadã. É fato dizer que nem todos os estudantes foram contemplados com as aulas remotas, por muitos fatores, mas nós professores sempre estivemos na labuta, no exercício do magistério. Eu não sei ao certo o que foi aquele ataque colérico: se desconhecimento da realidade ou crise de hemorróida! Sabemos que a política no Brasil é um trampolim e a ignorância cria seus mitos ou micos! Temos os exemplos nacionais. No Estado não seria ao todo diferente. Foi estúpido da parte de um deputado aquela agressão descabida, não merecíamos discurso tão esdrúxulo e maquiavélico. Se ele pensou em se promover politicamente, a situação é ainda mais preocupante:  saber que existe gente que acredita no que foi dito por um sujeito que não sente/ passa na pele o que estamos vivendo todos os dias é estarrecedor.

PRN – O senhor, como educador, assessor pedagógico, consegue vislumbrar outros setores em que todos achem que tem propriedade para criticar, como acontece com a educação?

MV – Ouvi de algumas pessoas que os cidadãos e cidadãs iriam sair melhores dessa pandemia. Eu ainda não consegui vislumbrar essa atitude. Vejo que existe um ódio desenfreado no sujeito social da atualidade. Muita gente está atirando para todos os lados. Vejo professores, a imprensa, artistas sendo atacados/criticados.

PRN – O que a pandemia impactou na rotina da educação, especialmente no trabalho de professores, supervisores e assessores pedagógicos?

MV – Em tudo. A educação precisou ser reinventada: mudou a rotina, as práticas, a forma de fazer/agir do pedagógico. Houve a incorporação do teletrabalho, da apropriação das ferramentas tecnológicas e do distanciando social. A educação saiu do espaço escolar para dentro das casas dos professores. Houve a quebra da individualidade e o crescimento das horas trabalhadas. Os horários foram extrapolados e as horas de frente as telas ampliadas.

PRN – Como educador, quais as perspectivas que o senhor vislumbra para a educação pós-pandemia?

MV – Tudo ainda é muito incerto. Estamos escrevendo um novo capítulo das nossas vidas, aprendendo, aos poucos, com as nossas novas experiências. Há tempos que sabíamos que a escola precisava ser reinventada para as novas demandas da sociedade. Tivemos que mudar bruscamente e vejo que tudo o que foi aprendido e experimentado deverá fazer parte da rotina da escola da pós pandemia. As práticas não serão abandonadas, serão agregadas aos processos de ensino e aprendizagem. O que resta saber? Como as escolas serão preparadas para existir nesses novos tempos. Muita coisa deve ser adaptada(…)

PRN – Será possível incorporar algumas das práticas do ensino remoto atual mesmo após essa crise sanitária?

MV – É preciso replanejar as estratégias, criar modelos e paradigmas. Fazer rejuntes não adianta, a educação já está cansada de remendos. Tudo pode ser se tiver investimento na aquisição de materiais, reformas de espaços, ampliação de possibilidades…

PRN – Sua mensagem final.

MV – As coisas estão fora do lugar, o mundo está indo para uma direção muito incerta. Tudo é muito confuso e precisamos colocar os pés no chão para não deixar nossa resistência ser maculada. Estamos sem políticas humanitárias e sem soluções civilizatórias. Sigo acreditando na leitura, na literatura, na arte em geral para fazer a diferença na vida do homem e nas relações sociais. É preciso uma mudança de foco e de direção. Basta de retrocesso e de continuar reféns dessa falta de tantas coisas que assolam nossas vidas. Precisamos de um impeachment do genocida, de uma guinada política e de plantar a esperança por aí para poder colher a vontade de viver em uma sociedade pautada na igualdade, na fraternidade, na liberdade e, acima de tudo, na democracia.

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