Escritores e escreventes

 

“Quem fala? Quem escreve? Falta-nos, ainda, uma sociologia da palavra.” É assim que se inicia o ensaio antológico do crítico literário e filólogo Roland Barthes.

Barthes é de França. E é também do mundo. O seu livro “Crítica e Verdade”, se não se encontra em estado de extinção no mercado editorial, pelo menos anda beirando isso, é uma joia do ensaio crítico moderno. A coleção, que foi dirigida, dentre muitos escritores, pelo crítico e tradutor Haroldo de Campos (há pouco desaparecido dentre nós) e outros intelectuais da crítica literária, recebe o nome de Debates. Nesse livro se encontra um ensaio que, a título de empréstimo, apoderei-me: Escritores e Escreventes. Quem é o escritor? Quem é o escrevente ou o escrevinhador? Primeiro, Barthes coloca, para principiar o seu estudo entre as figuras em destaque, o escritor e o escrevente, o que eles têm de mais comum: a palavra. E, ao passo que analisa o que ambos têm de diferenciação, separa o joio do trigo, nunca, porém, descartando a importância de um e o valor superior de outro. “O escritor realiza uma função, o escrevente uma atividade”, sentencia Barthes. “O escritor é aquele que trabalha sua palavra (…) e se absorve funcionalmente nesse trabalho. A atividade do escritor comporta dois tipos de normas: normas técnicas (de composição, de gênero, de escritura) e normas artesanais (de lavor, de paciência, de correção, de perfeição)”. Mais adiante, ele nos repassa o caráter filosófico da figura do escritor dizendo que “o escritor é um homem que absorve radicalmente o porquê do mundo num como escrever.” Por que o mundo? Qual o sentido das coisas? Essas são, também, perguntas de Barthes, e de tantos e tantos escritores que quiseram, cada qual à sua maneira, responder a esse enigma que cada um descobre por si, ou o tenta fazer. E o escrevente? Onde podemos situar a figura do escrevente ou o escrevinhador nesse ensaio de Roland Barthes? E ele, de imediato, nos diz que “os escreventes são homens “transitivos”; eles colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio; para eles, a palavra suporta um fazer, ela não o constitui”. Para Barthes, o escrevente tem a característica de aflorar dialetos, como, por exemplo: marxista, cristão ou existencialista, “mas muito raramente estilos”. Hoje nos perguntamos, em meio aos vendavais de edições, de histórias, e de novos escritores: como, em pleno século XXI, distinguiríamos a figura do escritor e do escrevente? Usaríamos a mesma técnica barthesiana? Interrogaríamos tal qual Barthes interrogou? Será que não agimos como meros escreventes, metidos e engodados por seus hobbyes, empurrando, garganta abaixo, palavras e mais palavras ao leitor?

“O escritor tem algo de sacerdote, o escrevente de clérigo; a palavra de um é um ato intransitivo (portanto, de certo modo, um gesto), a palavra do outro é uma atividade. O paradoxo é que a sociedade consome com muito mais reserva uma palavra transitiva do que uma palavra intransitiva”. E Barthes continua: “a função do escrevente é dizer em toda ocasião e sem demora o que ele pensa”. Porém, no mesmo ensaio, Barthes descreve o que para ele seria uma contradição pura: “cada um hoje se move mais ou menos abertamente entre as duas postulações, a do escritor e a do escrevente; a história, sem dúvida, o quer assim, pois ela nos fez nascer tarde demais para sermos escritores soberbos (de boa consciência) e cedo demais (?) para sermos escreventes escutados”. “Os escritores têm bruscamente comportamentos, impaciências de escreventes; os escreventes se alçam por vezes até o teatro da linguagem. (…) Em suma, nossa época daria à luz um tipo bastardo: o escritor-escrevente”.

Fica aí, então, a pergunta: saberia o caro leitor, agora, diferenciar o escritor do escrevente?

 

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