Sobre as inquietações de uma pessoa em situação de rua

Minha Opinião

Só hoje tive a oportunidade de ler sua missiva e refletir sobre cada questionamento que fizestes. Não acho que tenhas exagerado em suas observações, pois, mesmo distante acompanho a situação de cada um(a) que me procura ano a ano. Nunca deixei de ler as correspondências que me chegam, porém, devo admitir que alguns pedidos são impossíveis de atender, pois não dependem de mim. Não sou o Senhor, que tem o poder sobre todos, muito menos ocupo cargo político, a quem cabe o dever de sanar ou acabar com a miséria em que vive parcela da população mundial.

O que me chamou atenção em seu texto foi o fato de ter sido fruto da reflexão de uma tríade – Pai, Filha e uma Pessoa em Situação de Rua -, cujos pensamentos e preocupações convergem. Assim como você, responderei a missiva seguindo cada questão que levantastes e direcionarei a resposta à pessoa em situação de rua, a quem chamarei “d`aquele que não quero ver”, isto porque só terás como ler em janeiro de 2020 e muitos estarão em suas praias e resorts.

Para começar lhe confesso que a ideia de ser Papai Noel nunca passou pela minha cabeça, foi pura criação de pessoas que quiseram e conseguiram usar meu nome – uns para fazer o bem, outros para se dar bem – em beneficio próprio.

Também confesso que o tal acordo ou contrato com o mercado me pegou de surpresa. Não duvido que algum espertalhão tenha usado um laranja para assinar tal contrato e se passar por mim. Até gosto do vermelho, não por ser símbolo de algum produto, mas por uma identificação ideológica, pois representa paixão, energia, fogo, determinação, amor, e tudo isso leva a solidariedade.

Entendo a frustração “d`aquele que não quero ver”, pois a lenda criada em torno de minha pessoa relata a proximidade às pessoas carentes de meu país. Se isso era verdade e hoje os(as) mais carentes só são lembrados em dezembro, é porque a hipocrisia está superando a boa vontade e o amor que deveria existir entre as pessoas.

Sinto muito que as pessoas substituam o amor, a fraternidade, a solidariedade que poderia ter o ano todo, pela matéria, chamado PRESENTE, no mês do Natal ou um prato de comida. Me permita lembrar que não são todas as pessoas que agem com desdém, desprezo e ignoram “aquele que não quero ver”, ainda existem os de boa-fé, mesmo que minoria.

Você tem razão em relação ao culto ao consumismo exacerbado em meu nome. Beneficia exclusivamente o(a)s que vivem do mercado, é riqueza que vai e que não retorna em benefício da maioria.

Sei que palavras não mudam muita coisa, porém palavras bem usadas e direcionadas para a formação política cidadã pode mudar a vida de milhares de famílias. Em minhas horas vagas busco compreender o homem e sua relação com a política, o conhecimento e como isso afeta na formação educacional das pessoas, lendo Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Em uma das passagens de seu livro ele afirma que “a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera violência dos opressores”.

Assim lhe peço que não desista, sempre que sentir necessidade procure conversar com àquele(a)s que ainda lhe dão ouvidos, mesmo que de janeiro a novembro sejam pouco(a)s os que demonstram ter esse tempo.

Entendo suas angústias, sua falta de comida, diversão e arte, sua permanente condição de vítima da opressão do Estado e da sociedade capitalista e consumista. Entendo sua busca por respostas que expliquem sua condição humana ou desumana.

Para encerrar permita-me reproduzir um questionamento seu: “erguerei o olhar para o Céu – continuarei sem saber porque, talvez continue acreditando em algo divino – e perguntarei: Por que ainda existo? Será para esperar dezembro e voltar a ser visto novamente pelos olhos de quem o ano inteiro me desprezou?

A falta de humanidade não está em você que vive em situação de rua, mas naquele(a)s que ignoram de janeiro a novembro sua condição humana.

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