Dormir sob barulho é uma proeza. Poucos conseguem. Por isso a noite proporciona todas as condições, a começar pela escuridão, para que o mundo se recolha e domine o silêncio necessário ao descanso do corpo, uma exigência natural para a reposição de energia. Embora a continuidade de muitas atividades durante a noite seja indispensável e a cultura e tecnologia tenham estendido a prática de atividades não essenciais ao período noturno, isso ainda é exceção, restrita a certos lugares e situações, pela simples razão de que não muda uma característica elementar a todo ser vivo, o chamado ritmo biológico.
Pequenas e médias cidades, entretanto, eram habituadas a certos sons e ruídos da noite. Alguns incômodos, embora não a ponto de competir com o cansaço do dia e impedir a incursão ao reino dos sonhos. Outros, de tal modo inseridos à essência da noite eram compatíveis com o sono normal, agindo até como hipnóticos naturais. Os gatos, por natureza livres e de hábitos noturnos eram protagonistas nessa “sinfonia”, ao lado dos cachorros. Uma refrega entre gatos em um telhado parece um bombardeio aéreo, um incômodo irritante e limitador da conciliação do sono. Mas eles logo migram para outras arenas e, apesar da chateação, ninguém deixaria de dormir por causa do desentendimento entre esses felinos tão adaptados à vida doméstica. Os cachorros estavam em todos os quintais. Atentos, latiam ao movimento de qualquer coisa, inclusive dos gatos. E latiam, também, porque os outros latiam. E quando em hordas de vira-latas passeando pelas ruas, altas horas, latindo e cheirando a retaguarda uns dos outros, vez por outra se desentendiam com mordidas e patadas na disputa por alguma coisa para, em seguida, caminharem normalmente lado a lado, como se nada tivesse acontecido. Cachorro não guarda mágoas.
Conforme a época do ano, o concerto tinha a colaboração de diferentes seres noctívagos. O estridular de grilos e cigarras, quando próximo, desafiava a paciência de quem precisava dormir, mas longe tornava-se mais integrado aos sons noturnais. A serenata dos sapos na época de chuvas, de rios e lagoas cheias, até embalavam o repouso, até que os galos, pelas madrugadas tratavam de acordar os de hábitos matutinos e incomodar os que haviam prolongado o dia na noite anterior, por obrigação ou preferência.
A habitação vertical afastou os ouvidos noturnos desses sons tão íntimos do chão. O ruído de automóveis os suplantou. O progresso vem, atende a necessidades do passado e cria outras. Tudo muda, mas permanece uma certeza: a de que sempre será necessário escutar o chão.