CRÔNICA

O RIO E AS LAVADEIRAS

Carlos Drumond de Andrade, no início do conto “As Lavadeiras de Mossoró” diz que “cada uma tem sua pedra no rio”. De fato. As pedras, pedaços de rochas de arenito silicoso, superfície polida e mais ou menos plana, altura de alguns centímetros, área de cerca de um metro quadrado e formas variadas, eram bancadas para lavagem de roupas. Segundo Drumond, “suas formas diferentes também correspondem de certo modo à figura física de quem as usa”. Não sei. Sei que as lavadeiras, sentadas sobre outra pedra ou sobre as próprias pernas, à beira do rio, com a mão em concha jogavam água na roupa, passavam o sabão, esfregavam e batiam forte com bastões de madeiras, os cacetes, até o último resquício de sujeira.

Não conheci aquela que inspirou o poeta, mas lembro de Pinel, Joana, Ofélia. E de minha avó materna, Cecília. As mulheres e seus ofícios de lavar roupa, “de casa” ou “de ganho”, à beira do rio são testemunhos de dignidade sonegados às gerações atuais como se arrastados tivessem sido com as próprias águas do rio, para além da lembrança coletiva da cidade.  Nos Pereiros, Centro, Paredões e Barrocas, quando o sol despontava já as encontrava na jornada. Algumas cantavam, riam, todas conversavam, e tudo ao mesmo tempo, uma mistura caótica de timbres que contava, em dramas e comédias, histórias de vida, nesse grande teatro aberto, enquanto o sol, quarando a roupa, percorria a manhã até a cumieira do céu. Hora de voltar para casa, carregando agora a roupa molhada, um peso maior.

Sim, cada uma tinha sua pedra. E tinha também o local, o espaço onde estava a pedra. E é interessante porque isso era consensual, implícito, sem norma oficial ou oficiosa, mas geralmente obedecendo uma lógica de precedência, espécie de usucapião que passava de mãe para filha, depois para a neta, uma corrente somente quebrada quando as gerações seguintes, vencendo os pesados mecanismos de mobilidade social, logravam acesso a atividades economicamente mais vantajosas e igualmente dignas.

Uma série de fatores mudou essa paisagem. A expansão da rede de distribuição levou água a um número imensamente maior de residências a partir dos anos 1970. Igualmente, um exponencial número de famílias teve acesso às máquinas lavadoras de roupa, diminuindo a demanda pelo serviço. Por fim, o próprio rio sofreu a degradação conhecida. Mas esse rio, um dia revitalizado, vai sentir falta da música, das risadas e da tagarelice das lavadeiras, todas as manhãs, durante o caminhar do sol para a cumieira do céu.

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