CRÔNICA

O JOGO DO BICHO

Pela dimensão continental, o Brasil tem hábitos culturais restritos a certas regiões, outros que assumem formas e até nomes diferentes conforme a parte do país e alguns que de tão difundidos caracterizam autêntica unidade cultural nacional. Futebol e carnaval estão em todo lugar, mas o jogo do bicho, além dessa capilaridade, traz consigo o que é tido também como traço comum à sociedade brasileira que é a informalidade.

O jogo do bicho não acabou. Pelo contrário. Mas, mudou como tudo muda. Apesar de conservador, algumas coisas são diferentes. Como a referência é a nossa região, lembra-se que as apostas, hoje feitas em locais fixos, eram antes basicamente operacionalizadas pelos passadores do jogo que circulavam pelos bairros, embora os pontos fixos também existissem. Cada área da cidade tinha seus “cambistas” conhecidos que passavam pontualmente e eram aguardados, nas casas, nas bodegas ou esquinas, por pessoas preocupadas em não esquecer o sonho daquela noite, pois se não conseguiam elas próprias decifrar o conteúdo das jornadas oníricas, os cambistas não deixavam de ser também uma espécie de intérpretes desses sonhos, oráculos especializados em enquadrar os mistérios dos sonhos, quaisquer que fossem, a um dos 25 bichos que compõem o painel do jogo.

Depois, era só passar para a pequena caderneta a tradução matemática da quimera, outra especialidade dos cambistas. As ciências dos números diretos e invertidos, grupos, dezenas, centenas, milhares, “primeiro ao quinto”. Ainda tinha (tem) o fato de um mesmo sonho poder remeter a mais de um bicho diferente e, consequentemente, a outros números.

Tudo era confiança (a informalidade de que falávamos). Confiança no palpite; confiança no cambista, o avalista de fato; na posse da pequena papeleta, que resultava da introdução de uma surrada folha de papel carbono entre as folhas da caderneta.

Mudança provavelmente também na inspiração de quem joga. Não obstante os camelos, elefantes, leões e tigres que o morador da região só vira no circo, e do urso, que em nossa versão carnavalesca foi enrolado numa estopa (como se aquele bicho que dorme no gelo sentisse frio no calor de Mossoró) a maioria dos animais eram presenças diárias em nossa realidade rural que também se insinuava pelas cidades e, consequentemente, se impunha inclusive nas fantasias das pessoas. Como a do cidadão que sonhou com o cavalo de um conhecido, jogou e deu Jacaré. Intrigado, comentou com o amigo o sonho e a realidade do resultado do jogo. Na conversa a charada foi decifrada. O nome do cavalo do amigo era Jacaré.

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