A internet é um espaço democrático em que se reverberam, de maneira muito intensa, opiniões, comentários e debates. Ao mesmo tempo em que se constitui em espaço para a exposição de boas e necessárias ideias, também tem sido utilizada como campo para propagação de discurso de ódio, para proliferações de comentários machistas, discriminatórios e, no mais das vezes, criminosos. Qual a influência dessa onda em nossa saúde mental e o que fazer para evitar seus malefícios são algumas das questões refletidas pela psicóloga Vanessa Furtado de Araújo nessa Conversa da Semana. Psicóloga clínica, especialista em Teoria Cognitiva Comportamental e neuropsicóloga, Vanessa Furtado, que compõe o Núcleo de Psicologia da Nossa Clínica, aborda, nessa entrevista, outros temas importantes relacionados ao comportamento humano e destaca ações preventivas para que possamos preservar a nossa saúde mental. Veja na íntegra:
Por Márcio Alexandre
PORTAL DO RN – Vamos começar nossa conversa falando sobre gaslighting. O que está por trás dessa expressão?
VANESSA FURTADO – O termo surgiu após o filme Gaslighting – À Meia-luz, ou Gaslight (1944), que contava a história de um homem que fez de tudo para convencer a esposa que ela estava perdendo a razão, pois tinha a intenção de ficar com a fortuna dela. Então, ele realizava manipulações frequentes até que ela questionasse a sua própria sanidade mental. O título do filme faz referência às lâmpadas da casa dos personagens, que são alimentadas a gás, e em certo momento piscam. A mulher nota, mas o marido a faz acreditar que está imaginando coisas. Ele se apresenta inicialmente como um homem encantador, mas, aos poucos, faz com que a mulher acredite estar louca para roubar rubis que estão escondidos na casa dela. A palavra gaslighting significa manipulação. Nele, o home distorce, omite ou cria informações, fazendo com que a mulher duvide de si mesma, de seus sentimentos, da sua capacidade e às vezes até da sua própria sanidade.
PRN – Quem são as vítimas mais comuns desse tipo de violência psicológica?
VF – As vítimas mais comuns são as mulheres, mas esse tipo de violência psicológica também pode vir de um pai ou outro parente (geralmente homens), entre amigos e até no ambiente de trabalho, vindo de chefes ou colegas. Quando os pais manipulam os filhos, estes se tornam adultos inseguros e em muitos casos desenvolvem depressão e algumas síndromes.
PRN – No caso, de crianças, como os pais ou responsáveis podem identificar que elas estejam sendo vítimas de violência psicológica?
VF – A violência psicológica por vezes não é de fácil identificação, geralmente fica mais evidente quando o comportamento da criança muda. Trazendo reflexos na alimentação ou quando demonstram uma tristeza permanente, irritabilidade excessiva, choro sem causa aparente, enurese, quando a criança se envolve em brigas frequentemente na escola e ou o seu rendimento escolar está baixo, são sinais que devem deixar os pais e responsáveis em alerta. E se surgir alguma dúvida e ou suspeita é sempre importante buscar a escola e ajuda profissional de um psicólogo para maiores esclarecimentos.
PRN – Uma questão muito recorrente nos últimos anos se refere à questão do bullying. Quando uma suposta brincadeira se configura em bullying?
VF – O bullying é uma palavra que se originou na língua inglesa. “Bully” que significa “valentão”, e o sufixo “ing” representa uma ação contínua. A palavra bullying designa um quadro de agressões contínuas, repetitivas, com características de perseguição do agressor contra a vítima, não podendo caracterizar uma agressão isolada, resultante de uma briga. Normalmente, chamamos de bullying o comportamento agressivo sistemático cometido por crianças e adolescentes em regra na escola. Quando um comportamento parecido acontece entre adultos, geralmente no ambiente de trabalho, classificamos o ato como assédio moral. Comumente, o bullying é uma prática injusta, visto que os agressores ou agem em grupo (ou com o apoio do grupo) ou agem contra indivíduos que não conseguem se defender das agressões. E essas agressões não podem ser confundidas como uma mera brincadeira, pois ela se configura de ordem verbal, física e psicológica, comumente acontecendo as três ao mesmo tempo. As vítimas são intimidadas, expostas e ridicularizadas. São chamadas por apelidos vexatórios e sofrem variados quadros de agressão com base em suas características físicas, seus hábitos, sua sexualidade e sua maneira de ser. Apesar de considerarmos o sofrimento da vítima, também devemos tentar entender o comportamento dos agressores. Muitas vezes, são jovens que passam por problemas psicológicos ou que sofrem agressões no ambiente familiar e na própria escola, e tentam transferir os seus traumas por meio da agressividade contra os outros.
PRN – As redes sociais viraram terreno fértil para a proliferação de ataques às pessoas. Como nos proteger disso?
VF – A internet, com as suas redes sociais, é de fato espaço dito como democrático, onde todos podem opinar abertamente, demonstrando seus pensamentos livremente, porém devemos ficar atentos em relação aos excessos e as intenções nessas falas, pois, por vezes as intenções são maldosas e as consequências desastrosas. E como nos proteger disso? Sinto que por sermos seres singulares temos que analisar caso a caso, contudo de forma geral a postura a ser tomada depende da faixa etária. Por exemplo: se o caso envolver uma criança, os pais devem estar sempre vigilantes, acompanhando os históricos do que foi visualizado e o conteúdo do mesmo, limitar o tempo de uso e a frequência também são formas de proteção. Instalar bloqueadores para que as páginas de conteúdo adulto não sejam acessadas livremente é uma outra forma de prevenção. No caso de adolescentes, o diálogo é sempre um caminho assertivo, acompanhar o conteúdo e as postagens diárias do jovem nas redes sociais também. Já com relação aos adultos, procurar não se expor tanto, não expor dados pessoais, dar menos importância às opiniões alheias, vem sendo boas alternativas para combater esses ataques e por fim, buscar orientações de um psicólogo em casos mais específicos. Ele saberá orientar e encaminhar para os profissionais adequados.
PRN – Aliás, foram comentários de ódio que levaram um jovem a tirar a própria vida no Rio Grande do Norte recentemente. Há explicação para que essa postura criminosa seja tão recorrente nas redes sociais?
VF – Esse caso foi bastante comentado e sinto que será um marco para mudanças significativas no nosso Estado no que se refere ao uso das mídias sociais. Deixo aqui meus sentimentos aos familiares. Dito isto, explico que esse livre acesso, em excesso, com ausência de filtro, sem uma punição adequada e célere são facilitadores para uma postura inadequada nas redes sociais. Porém, independente de tudo, se faz necessária uma política de educação social direcionada aos jovens para que os mesmos aprendam a desenvolver uma conduta mais adequada e menos ofensiva ao utilizarem as suas redes sociais.
PRN – Embora as pessoas sempre busquem culpar as redes sociais, como se o espaço e os instrumentos fossem os culpados pelos discursos de ódio que reverberam por lá, não são as coisas as culpadas. Estamos doentes mentalmente?
VF – Sabe se que a arma não é o problema em si e sim a mão que a empunha, assim sendo, não podemos culpabilizar o espaço (redes sociais) e ou os instrumentos (celulares e computadores) pela propagação de nossas palavras agressivas sem motivo aparente nas redes sociais, encharcadas do mais puro ódio, sendo destiladas a tudo e a todos que pensem e se comportem de forma contrária do que acreditamos ser o correto. Essa maneira de impor desenfreadamente aos outros os nossos pensamentos, escolhas, opiniões pessoais e ou políticas, identidade de gênero, orientação sexual entre outros é totalmente adoecedor. Assim sendo, estamos sim vivendo em um processo de adoecimento mental infelizmente.
PRN – É possível ter uma boa saúde mental no contexto brasileiro: de pandemia, de discursos de ódio, de extremos políticos?
VF – O adoecimento mental é bastante comum e frequente em nossa sociedade. Acredito que espaços como esse são de suma importância para desmistificarmos questões como a ida ao psicólogo e ou psiquiatra não ser mais vista como “coisa de doido”. Ir ao consultório do psicólogo ou psiquiatra, buscar terapia e/ou medicamento devem ser compreendidos como algo normal, necessário e aceitável como ir a qualquer outro profissional de outra especialidade da área da saúde. Dito isto, afirmo que sim, é possível ter boa saúde mental na atualidade, pois somos seres sociais e como tais estamos em constante construção e transformação. É bem verdade que estamos passando por uma fase difícil de mudanças e mudanças estas que nos foram impostas de forma inesperada, porém manter o equilíbrio, buscar ajuda psicológica quando sentir necessidade, sem julgamentos e com mais acolhimento são pontos chave para o momento atual e para se ter uma boa saúde mental.
PRN – De maneira geral, o que nos cabe de forma individual para que não sejamos mais um a contribuir com uma cultura de guerra, tanto na vida presencial quanto na internet?
VF – De forma individual é importante trabalhar a nossa autopercepção, nos revestirmos de empatia, nos colocando no lugar do outro, sem julgamentos e refletindo com parcimônia antes de expressar qualquer opinião pública sobre alguém ou algo para não nos tornarmos propagadores do ódio e da maldade de maneira natural, presencial ou virtualmente.
PRN – Sua mensagem final. Fique à vontade para acrescentar mais alguma informação que julgue necessária, e que tenha deixado de ser contemplada nas questões acima.
VF – Finalizo fazendo algumas sugestões: a primeira é a que os pais levem os seus filhos ainda pequenos ao psicólogo para que possamos trabalhar de maneira preventiva. Incluam o psicólogo como mais um profissional a fazer parte do seu check-up anual familiar. A segunda é que pesem menos a mão em postagens e colocações no mundo virtual, pois não sabemos as consequências dessa nossa fala e, por fim, a terceira é que ampliem seus olhares para o outro de forma mais consciente e amorosa. Todos nós que aqui estamos passando por uma pandemia mundial e carregamos em nós marcas no inconsciente e consciente dessa fase difícil, assim sendo sejam mais acolhedores e menos julgadores uns com os outro e consigo mesmos.