Entrevista

Conversa da Semana com Luiz Gomes Filho

A pandemia da Covid-19 impôs restrições às pessoas, instituições e atividades. Obrigou a que todos buscassem novos meios de realizar atividades. Para a educação, o caminho foi o ensino remoto. Mas até quando ele tem sido útil? Por quanto tempo permanecerá como ferramenta pedagógica? O que mudará na forma como pensamos e fazemos educação? Essas são algumas das questões que exigem reflexão sobre o ensino pós pandemia. “Esse modelo de ensino precisa ser pensado e repensado enquanto formas e meios de se evitar que se torne uma educação excludente, porque hoje é assim que o ensino remoto se caracteriza”, avalia Luiz Gomes Filho, professor-doutor da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa). Ele discute estas e outras importantes questões, nessa Conversa da Semana. Luiz Gomes da Silva Filho é graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é especialista em Educação em Direitos Humanos também pela UFRN. Atuou na Educação Básica na Rede Municipal de Parnamirim. Possui Mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba e Doutorado em Educação pela mesma instituição. Luiz Gomes Filho trabalha com educação popular, promoção da igualdade racial na escola e política educacional, entre outros temas. Veja a entrevista na íntegra:

Por Márcio Alexandre

PRN – A pandemia atingiu todos os setores da sociedade, incluindo a educação, que teve que buscar meios para se reinventar. Para a educação, o que pode ficar de lição?

LUIZ GOMES – A pandemia antecipou uma série de fenômenos que já nos rodeava. A Educação à distância, o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), o home office, entre outros. Tudo isso está de alguma forma condensado no que estamos chamando agora de Ensino Remoto. Então a lição que fica é: não adianta se esquivar ou jogar para debaixo do tapete os fenômenos educativos que se apresentam enquanto desafios. É preciso antes, buscar entendê-los e tratar de inseri-los ou rejeitá-los dentro de um processo de reflexão, compreensão e racionalização desses fenômenos.

O Ensino Remoto certamente veio para ficar, ainda não sabemos exatamente como, mas certamente não irá embora com o fim da pandemia.

PRN – O ensino remoto, base da educação à distância, foi a alternativa possível utilizada nesse período. Com essa experiência prática, o ensino remoto poderá ganhar mais espaço na educação dita regular, inaugurando a ideia de ensino híbrido?

LG – Há uma tendência elegante de diferenciar ensino remoto de educação à distância, embora isso fique basicamente na elegância. Quando partimos para a realidade os ternos, por exemplo, são muito familiares. Eu gostaria de situar o ensino remoto dentro de uma perspectiva de educação à distância. O Ensino Remoto certamente veio para ficar, ainda não sabemos exatamente como, mas certamente não irá embora com o fim da pandemia. Então esse modelo de ensino precisa ser pensado e repensado enquanto formas e meios de se evitar que se torne uma educação excludente, porque hoje é assim que o ensino remoto se caracteriza. Se ele implicará numa hibridização do ensino regular, acho que ainda é cedo para afirmar, mas certamente andará lado a lado a este.

PRN – Uma parcela considerável da comunidade acadêmica, sobretudo aquela ligada à educação, vê a educação à distância com certa desconfiança. Pelo que temos visto, esse cenário tende a mudar?

LG – As questões de natureza social levam muito tempo para mudar. A desconfiança com a educação à distância tinha e tem um pano de fundo que é a mudança na formatação da docência, a mudança de uma forma de ensinar para outra. Isso toca na essência inflexível da educação tradicional. Não significa que tudo que seja novo seja bom ou funcione e tudo que seja tradicional seja ruim e não funcione, não é disso que estou falando, mas efetivamente, essas desconfianças têm, em algum grau, esse caráter. Se essa desconfiança vai diminuir ou não ainda é precoce para afirmar, pois isso dependerá do desempenho, do uso e dos resultados que teremos em avaliações posteriores. Mas uma coisa podemos afirmar, com desconfiança ou sem desconfiança, todos tivemos que olhar para a educação à distância com mais seriedade.

Dentro do ensino remoto, para mim, há dois alertas que precisamos ter: primeiro é a questão da exclusão, e o segundo é o ensino contextualizado.

PRN – Quais fatores podem contribuir para que o ensino via plataformas digitais seja precarizado?

LG – Existem muitas formas de se precarizar o ensino remoto. Inclusive porque ele mesmo é entendido por muitos pesquisadores enquanto uma precarização do ensino regular. Mas dentro do ensino remoto, para mim, há dois alertas que precisamos ter: primeiro é a questão da exclusão, e o segundo é o ensino contextualizado. No primeiro caso é preciso verificar sempre se os alunos têm acesso aos meios necessários para ingressar nessas plataformas, que sempre requerem um celular e acesso a uma internet boa. Depois é preciso atentar para que o ensino remoto não perca de vista a realidade dos alunos, não pode se converter numa preocupação resumida a “como dar aulas sem está na sala de aula”. Esses dois marcadores serão determinantes tanto para o bom desempenho quanto para a precarização do ensino nas plataformas digitais.

PRN – A aprendizagem remota remete à ideia de homeschooling porque, embora mediado por um professor que está on line, o aluno estuda sem ter que sair de casa. É possível imaginar que os entusiastas dessa proposta voltem a insistir nela?

LG – Provavelmente sim, mas adianto que isso que estamos vivenciando está muito distante de uma perspectiva de homeschooling, sobretudo aquela gestada e desenvolvida na Inglaterra e nos Estados Unidos. O Ensino Remoto do qual estamos falando agora é o ensino em um País que carrega desde longa datas lacunas gritantes em relação ao ensino. Então, essas lacunas não serão superadas com uma mudança de nome, dando-lhes um nome bonito e em inglês. Então, alguns podem se animar com essa mínima aproximação, mas eu prefiro ter cautela e entender primeiro que o ensino remoto do qual estamos falando carrega consigo todas as marcas e preocupação que já tínhamos e que ainda não foram superadas.

PRN – A importância da escola enquanto espaço de aprendizagem tende a diminuir após a experiência do ensino à distância?

LG – Não. Mas o que acontece dentro dela tende a sofrer mudanças significativas. Isto é, a escola enquanto instituição histórica, tal qual as outras instituições que surgiram em período semelhante, como hospitais, hospícios e prisões, numa sociedade que Michael Foucault chamou de sociedade da disciplina, permanece, mas as formas de se ensinar, os conteúdos a serem ensinados, o trato com o aluno e o intuito a que essa escola serve, certamente estão neste momento sendo ressignificados. Já vinham sendo, mas com certeza a educação e o ensino à distância estão acelerando isso.

O ensino pós pandemia deve passar por uma revisão e reflexão profunda dos seus fins e das suas finalidades.

PRN – Não há ainda uma pesquisa que analise o sentimento da comunidade escolar e os impactos dessa nova realidade educacional. O que esperar do ensino pós-pandemia?

LG – Isso tudo é muito novo, a pandemia ainda não passou e como você disse temos poucas pesquisas para nos assegurar, mas algumas observações podem e devem ser feitas. Por exemplo, toda essas ferramentas tecnológicas, como as plataformas, certamente estarão presente nas reuniões pós-pandemia. Os cuidados com a saúde também serão vistos com mais seriedade. Os conteúdos trabalhados serão analisados à luz da realidade. Essas são apenas alguns exemplos que apontam que provavelmente haverá diversas mudanças no ensino pós-pandemia. Mas como eu já disse em outra ocasião, o ensino pós pandemia deve passar por uma revisão e reflexão profunda dos seus fins e das suas finalidades, o professor/a, sujeito central desse processo, precisa repensar muita coisa dentro do trabalho pedagógico, da sua pedagogia e fundamentalmente da sua docência.

PRN – A nova BNCC foca, nas competências e habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos, também a questão das tecnologias da informação. Essa ideia veio tardia para a educação brasileira?

LG – Na verdade as tecnologias se apresentavam em documentos anteriores, como Diretrizes Curriculares (DCNs), nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e na próprio Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB, 9394/96). Mas claro que precisamos resguardar o tempo em que essas leis foram apresentadas e também considerar a velocidade em que as tecnologias avançam, sobretudo a informática. Então seria inevitável que a BNCC não apresentasse tais necessidades. Mas eu vejo a questão da efetivação como preocupação maior. É preciso que haja efetivamente investimento nessa área, tanto na parte tecnológica, como na formação de professores, caso contrário será mais um dispositivo legal que não saiu do papel.

Mas veja, nem eu nem ninguém pode chegar hoje e dizer como será a docência pós-pandemia.

PRN – O senhor tem discutido sobre a docência pós-pandemia. Como ela será?

LG – Tenho feito diversas conferências on-line em escola públicas e privadas, universidades e institutos federais de educação sobre esse tema. Mas veja, nem eu nem ninguém pode chegar hoje e dizer como será a docência pós-pandemia, o que tenho dito é como ela não deve ser. Tenho falado em minha conferências e discutido juntamente com os professores os possíveis caminhos a serem seguidos no pós-pandemia, esse discussão terá que ser assim, coletiva, ouvindo os professores e as professoras, as gestoras, as famílias. Não tem fórmulas na educação. Não tem mágica. Então tenho apontando os equívocos históricos e os graves problemas da educação brasileira, tenho chamado a atenção para a saúde dos profissionais, para necessidade do conhecimento e do autoconhecimento, da formação e do empoderamento pela linguagem pedagógica. São essas e outras coisas que acredito que devem ter na docência pós pandemia.

Repito, a preocupação do professor deve ser em relação as aspecto pedagógico da tecnologia.

PRN – Os docentes tem reclamado que o ensino à distância praticamente dobra o trabalho pedagógico, pois é preciso preparar a aula para a sua transmissão/postagem/envio aos alunos. Isso pode contribuir para a desmotivar os professores? Como superar essa questão?

LG – Eu sempre defendi que o trabalho do professor deve ser pedagógico, o que ultrapassa isso compete a quem tem formação para tal. Então é muito ruim que o professor tenha que gravar, editar, postar (quase sempre sem saber) esses vídeos. Daí eu ter chamado a atenção para a formação, a formação pedagógica para essas novas tecnologias, mas há confusão nisso, não é que o professor tenha agora que virar um tecnólogo, ele tem que virar um professor melhor usando essas tecnologias, mas quem vai tratar vídeo, editar, fazer os ajustes deve ser alguém com formação para isso. Repito, a preocupação do professor deve ser em relação as aspecto pedagógico da tecnologia. Enquanto isso não for resolvido, essas tarefas extra-pedagógicas vão continuar sobrecarregando os professores e professoras e prejudicando o seu trabalho pedagógico, que é, em essência, sua função.

PRN – Um possível futuro retorno das atividades escolares presenciais deverá colocar em relevo quais temas/questões/conceitos?

LG – Inicialmente será muito pertinente que tenhamos aí, uma semana de formação, de palestras, de atividades lúdicas, isso para alunos e professores. Talvez em parques ou praças. Não dá pra simplesmente voltar à sala de aula como se nada tivesse acontecido e retomar os conteúdos do livro didático. Há pessoas que perderam parentes, outras perderam empregos, outras estão há muito tempo sem ver e abraçar os parentes. Então esse aspecto humano vai precisar ser reforçado em um momento de retomada das atividades. Depois, como sempre tenho frisado, cada professor e professora precisará fazer uma revisão de sua atuação, de sua prática, do seu trabalho. Isso não é somente pra ela ou ele melhorar enquanto profissional, é para repensar questões pessoais, de escolha, de saúde mental, precisa voltar às origens do seu trabalho e buscar os porquês da docência. Essa busca íntima será muito importante para a continuidade do trabalho. Finalmente os conteúdos escolares também serão revistos, pensados a partir da realidade social, essa que era uma luta antiga, que muitos nem aguentavam falar, agora se apresenta como uma verdade inexorável. É preciso encontrar o sentido de ensinar aquilo.

PRN – Sua mensagem final.

LG – Gostaria de agradecer o espaço que o Portal do RN me proporcionou e dizer que apesar de todas as dificuldades que estamos enfrentando, precisamos aprender algo com isso. Há muita coisa acontecendo na educação e cabe nós, professores e professoras dar as respostas. Para tal, precisamos lapidar nossas opiniões e diferenciá-la do senso comum. Essa é uma das nossas tarefas. Outra é que não haverá salvador da pátria, não haverá receita pronta para resolver os muitos problemas da educação. O que existe e acredito que sempre existirá, são pessoas preocupadas e, por isso mesmo, esperançosas de que há um caminho a seguir. Sempre haverá. Por algum motivo estamos na docência, então que possamos fazer dela muito mais que um emprego, mas um espaço de impactar e transformar vidas, sem nunca esquecer da nossa condição individual de sujeito, sem nunca se despir dos nossos próprios sonhos e objetivos, sem nunca descuidar da saúde, física e mental. Sem nunca negar nossa condição de gente, antes de tudo.

 

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