AS RUAS MUDARAM

A imagem das ruas de tempos atrás como campos de pelada é clássica. Essas mesmas ruas eram, também, cenário dos jogos de peteca e de vários jogos lúdicos que tinham em comum a habilidade da criançada de correr, livrando-se uns da perseguição dos outros; local das brincadeiras de roda das crianças, no início da noite, cânticos e danças simples nos terreiros das casas, que na zona urbana nada mais eram que parte da via pública, da rua, do espaço por onde fluía a vida comunitária nas suas manifestações mais verdadeiras. Os poucos caminhões carregados de sal, durante o dia, e os raros automóveis particulares moviam-se mais devagar e embora o risco não fosse ausente, era pequeno de modo que não impedia a convivência na rua.

Mas o piso de areia significava poeira no tempo do estio, ao bater o vento que no meio das tardes açoitava desde o fino pó das várzeas que circundavam a cidade até a sílica grossa nos bairros mais centrais. Representava, também, a lama, que resultava do encharcamento dos terrenos pela água da chuva quando elas caiam. E as pessoas queriam melhores condições de circulação por essas artérias. Sem aspirar a poeira que irritava a garganta, os olhos, e impregnava os cabelos; sem a surpresa de um banho indesejado ao passar por uma simples carroça ou bicicleta; sem levar areia molhada para dentro de casa, na sola do sapato.

Pavimentar ruas passava a ser meta imediata de qualquer administrador público, que assim elevava a satisfação popular com um tipo de obra mais fácil de executar do que, por exemplo, saneamento básico. Gradativamente, o piso de pedra ou asfalto foi permeando a cidade, das vias mais estruturadas até aquelas abertas sem mínimo planejamento. O trânsito ficava mais fácil para os automóveis e, de algum modo, a vida dos moradores melhorava em vários aspectos. Por outro lado, mudava o microclima. O desconforto térmico conhecido aumentava pela absorção da intensa radiação luminosa, devolvida em seguida em forma de calor; pela precária arborização urbana, o virtual desaparecimento do rio e a emanação da combustão nos motores de uma quantidade crescente de veículos.

Com o desenvolvimento da cidade, a antiga aspiração por ruas calçadas, era, agora, imposição desse desenvolvimento. Ao município cabe a obrigação de, cada vez mais, equipar espaços urbanos para a nova realidade. E mandar a conta para os moradores em forma de IPTU. Quem pode pagará mais pelos reduzidos espaços de lazer de condomínios e estabelecimentos do ramo. É o progresso, seus bônus e ônus. O fato é que as ruas não mais serão devolvidas à concertante algazarra e à sagrada inquietação da molecada.

Notícias semelhantes
Comentários
Loading...
Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support