CRÔNICA

ENCHER O CHÃO DE SOMBRAS

Debaixo do “pé de fícus”, suado da ponta dos cabelos à planta dos pés, o transeunte sentava um pouco e, batendo a brisa no rosto, logo o mundo era outro. A lembrança da Rua Cel. Gurgel, em Mossoró, se traduz em uma sucessão enfileirada dessas árvores à frente de antigas lojas e residências, o verde ignorando a aridez da terra, a sombra suavizando o calor destemperado, as folhas bailando em um ensaio permanente. Não era diferente na cidade inteira. Se a plantação em série observada, também, nas demais ruas da região central, fora iniciativa da prefeitura, ao tempo do Padre Mota, nos bairros a planta compunha paisagem familiar a várias gerações e alguns exemplares estão por aí até hoje, testemunhas mais que centenárias das transformações desses burgos empoeirados.

Mas nem só de fícus (Ficus benjamina) eram esses oásis à frente das casas. A beleza dos terreiros era também desenhada por tamarineiras (Tamarindus indica), cajaranas (Spondias dulci) e outras plantas, o sabor dos frutos oferecido como bônus a quem já tinha a sobra acolhedora. A cajarana dispensa apresentação entre nós e, embora se possa dizer o mesmo da tamarina, esta última é hoje incomum na área urbana, que assim se priva da imponência de seu porte, da mágica de suas folhas e flores que ao cair “bordavam” o chão, do sabor do suco feito com seus frutos oblongos, de casca quebradiça e polpa resinosa. Por algumas razões essas espécies foram sendo substituídas. O fícus tinha problemas com suas raízes que se projetam quase ilimitadamente em busca de água no solo, mas sua quase completa erradicação cai na conta do “lacerdinha”, mosquitinho pequeno e incômodo com infeliz predileção por irritar os olhos de quem passava embaixo das belas árvores e que tiveram a não menos lamentável ideia de aparecer na cidade ali pelos finais dos anos 60. Foi quando, não sabemos por qual via, começou a moda de plantar algaroba (Prosopis juliflora), planta mais rude que as anteriores, e castanhola (Terminalia catappa), ambas de sombra maravilhosa. Ocorre que a raiz da castanhola era pior que a do fícus e a da algaroba não segurava a árvore em pé às primeiras ventanias vindas com as chuvas. Selecionaram-se as acácias que agora cumprem seu papel.

A importância da flora nas transformações ambientais é discurso candente da atualidade. O paradoxo é a pouca importância dada à arborização das cidades, responsável pelo microclima. No extremo, folhas no chão são vistas como lixo. Que isso mude. Que se encham as ruas das sombras das árvores. E que as folhas caídas sejam apenas matéria orgânica a ser preservada no solo, no outono das plantas.

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