Afropotyguar: a mistura de música, poesia e resistência no talento de Jongozú e vittopoeta
Mixtape independente é um dos trabalhos dos irmãos artistas, de Mossoró/RN
Luane Fernandes — Da Agência HiperLAB/UERN
Muita gente está vivendo uma pandemia pela primeira vez na vida. Em meio a tanta ansiedade, medo e insegurança, a arte tem nos mantido sãos e esperançosos. Viver sem restaurantes e lojas? A quarentena tem mostrado que, sim, é possível. Mas como viver sem a arte? Sem música, sem o cinema, sem a literatura?
Para JongoZú e vittopoeta (Isso mesmo, com v minúsculo), jovens irmãos e artistas potiguares, de Mossoró, não bastou consumir arte. Foi preciso fazer arte. Do isolamento em suas casas, a dupla juntou música e poesia numa prova de amor ao Rio Grande do Norte. Tudo isso deu origem a “Afropotyguar”, mixtape que é também um recado de resistência cultural nessa esquina do Brasil.
O projeto conta com 7 faixas, muita diversidade e representatividade potiguar. Em sua construção, referências do mangue beat, blues, hip hop, e de expressões afro-brasileiras características do Rio Grande do Norte, como o Coco de Zambê e o Espontão. Nas pesquisas e estudo para realização do projeto, os dois chegaram ao Coco de Zambê, tradição que resiste até hoje às tentativas de apagamento cultural. O trabalho é também um resgate da ancestralidade indígena potiguar, silenciada e exterminada historicamente nos processos de colonização.
JongoZú é o irmão mais novo e possui apenas 14 anos. Ao fechar os olhos e ouvir seu canto, é difícil de acreditar. Dono de uma voz madura e potente, ele conta que desde os 9 anos se aventurou no mundo da música, a partir da sua primeira aula de violão. Sua principal influência foi o irmão, que sempre o incentivou a ouvir rap. Seu nome de batismo é João Lucas.
O nome artístico JongoZú vem de Jongo, uma dança brasileira de origem africana, praticada ao som de tambores, e Zú em alusão a Zumbi dos Palmares, importante líder quilombola. O trabalho musical começou com gravação de cover e postagens nas redes sociais. Hoje, já mostra músicas próprias nos gêneros rap e blues, como “Sujeito”, lançada em 2019, e “Pele Negra” e “Refúgio”, lançadas em 2020 e conta com algumas apresentações ao público.
Vittopoeta tem 20 anos e é estudante do curso de Psicologia, na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte. Ele começou a escrever rap com 15 anos, sem pretensão alguma, apenas como forma de expressar sua subjetividade. A partir da Psicologia, começou a focar nas poesias e se dedicar a elas, buscando, acima de tudo, falar sobre identidade e do seu lugar enquanto jovem potiguar. vitto conta que utiliza o espaço da universidade para amplificar a sua arte, já que as poesias possuem uma abertura maior no meio acadêmico. Seu nome de batismo é Pedro Victor, mas o que pegou mesmo foi o nome artístico. Com o tempo as pessoas começaram a reconhecê-lo e chamá-lo por poeta, e nunca mais pararam. De lá pra cá já se apresentou em universidades e eventos locais da cidade, como o Auto da Liberdade no ano de 2019.
Vittopoeta conta que a ideia de Afropotyguar começou depois de uma visita à casa do poeta cordelista mossoroense Antônio Francisco. Antônio é também xilógrafo, compositor e membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sendo considerado um dos principais nomes da poesia de cordel no Brasil. Para os jovens, é considerado um mestre. Tanto que, a faixa “Hey, poeta” é uma homenagem. Vitto explica que as lições e obra de Antônio são muito importantes na construção da obra.
“Afropotyguar é afirmação e reconhecimento. Nessa busca pelo meu eu, pelo meu lugar, eu me perguntava por que as narrativas sobre os sertões, sobre o Nordeste eram tão homogêneas, entende? E eu queria entender melhor o papel do RN dentro desse cenário nordestino e brasileiro. (…) Então fui estudar um pouco sobre a história do negro e da negra no RN, dos pretos e pretas, dos indígenas que habitavam a nossa terra e como essas populações contribuíram pra formação da nossa identidade cultural, pra formação do nosso eu. E querendo ou não, como a história da opressão dessas populações influenciaram na formação da nossa identidade, do nosso reconhecimento. Então Afropotyguar é uma narrativa anti hegemônica que tem como objetivo reconhecer na nossa identidade os aspectos de populações que foram historicamente oprimidas dentro dessas terras”.
O maior propósito deles com a mixtape é reacender e manter viva a cultura afro-potiguar, devolvendo a autoestima para o povo potiguar e ajudando a criar uma identidade, que há muito vem se perdendo. Algo que sempre inquietou a vitto era justamente a falta de potiguares nas grandes mídias, e o quão pouco se falava sobre o RN e aqueles que aqui moram. Além disso, JongoZú explica que muito do que é produzido aqui vem de fora, mais precisamente do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, e eles quiseram trazer algo que fosse diferente do que vem sendo produzido, algo autêntico e singular, misturando diversos ritmos regionais e globais, que fosse realmente a cara do Rio Grande do Norte.
“Então era essa ideia, de não deixar nem pop demais, no sentido de estrangeirista demais, nem deixar regionalista demais, tentando um equilíbrio entre essas duas coisas”, explica.
As religiões de matriz africana também tiveram grande influência na obra. JongoZú e vittopoeta entraram em contato com essa ancestralidade de forma bastante espontânea, quando visitaram um ritual de Umbanda em homenagem a Iemanjá em Areia Branca/RN.
A dupla possui um equilíbrio necessário, enquanto vitto se destaca mais nas letras, pois escreve há mais tempo, Jongo tem mais experiências com os beats. Ele conta que se interessa muito por tecnologia e atualmente está estudando sobre teoria musical para se aperfeiçoar ainda mais. Juntos, conseguiram produzir a mixtape de forma independente e colaborativa.
A produção é o mais surpreendente. Todo o trabalho foi feito dentro de casa, respeitando o isolamento social. Desde a composição das letras das músicas, até os beats e melodias: tudo foi feito a partir de um celular e um tablet. Os beats foram desenvolvidos através destes dispositivos, além de também algumas gravações no violão de JongoZú, que mesmo com 14 anos já possui uma bagagem melódica muito forte e traz forte referência da música negra, principalmente o blues. A sintonia entre os dois é tão única que se um deles começa a cantar, o outro já começa uma batida.
Algumas letras eles já tinham prontas. Outras são recentes, como Maracatu de Camarão. Ao escutá-la é possível perceber as referências a Chico Science e Nação Zumbi, uma das maiores referências para a mixtape.
“É também um manifesto a respeito da não identidade, a não identidade se desenha a partir de que não existem manifestações genuinamente potiguares. Então a gente pegou ritmos, instrumentos, coisas que não são potiguares, a priori, mas que a gente envolve essas coisas falando sobre potiguaridade. (…) A partir do não ter uma expressão genuína que se faz Maracatu de Camarão uma coisa tão genuína. Por isso esse nome Maracatu de Camarão. Maracatu que não é nem daqui do RN. E camarão que se refere aos potiguares. Então esse jeito potiguar de pegar as coisas de fora e meio que adaptá-las à nossa realidade. Então é uma crítica a esse movimento de sempre pegar o que é de fora, meio que com uma preguiça de produzir o que é nosso, ao mesmo tempo que nessa contradição é uma expressão genuinamente potiguar”, comenta.
A mensagem que Afropotyguar transmite é: valorizem o que é da nossa terra, as nossas raízes, o que é genuinamente potiguar. Os processos de colonização permanecem até hoje. Mesmo que o Brasil não seja mais uma colônia, heranças do colonialismo continuam presentes operando nas nossas mentes, no nosso olhar, nos nossos corpos e continuam apagando nossa ancestralidade afropotyguar. Por isso se torna muito mais fácil consumir e admirar o que é de fora, mas nunca o que é perto e está ao nosso alcance. Mas, não só isso, a mensagem que fica também é de que é possível germinar novas sementes no nosso solo.
Luane Fernandes é estudante do 7º período do curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo e colaboradora da Agência HiperLAB.
A Agência HiperLAB é uma ação do HiperLAB/UERN, projeto de extensão do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), coordenado pelo Prof. Ms. Esdras Marchezan.
O HiperLAB UERN é o Laboratório de Narrativas Multimídia do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).