CRÔNICA

CLUBE DA ESQUINA

A ideia da esquina como um clube aflorou na fértil criatividade de Milton Nascimento e um grupo de músicos, todos do primeiro time do que se chama de música popular brasileira. Mas a esquina mesmo, aquela que ficava perto de nossa casa, em qualquer cidade ou bairro, não estava muito distante do que seja um clube. Sem cadastro de sócios, sem mensalidades, sem paredes para isolar ou proteger seus associados, sempre aberto aos que chegavam, desde que trazendo no espírito o mesmo sentimento que ali, um dia, juntara seus fundadores, por falta do que fazer ou por simples vontade compartilhar.

Podia haver um banco, ou um tronco de antiga árvore servindo de banco. Podia haver uma árvore viva para dar sombra, talvez frutos, e mesmo para enfeitar o chão com folhas e flores caídas. Havia histórias e estórias, até boatos. Contavam-se piadas, algumas indignas de sair dos limites rigorosos da esquina, exceto se o novo ambiente fosse um salão de sinuca, salão de barbeiro ou arquibancada de futebol, de preferência na “geral”. Alguém podia narrar inteiramente a história de um filme assistido recentemente. Se o narrador tinha boa memória e estilo, era quase como se os circunstantes assistissem ao filme, o que não ajudava muito a indústria cinematográfica, pois eram alguns ingressos a menos pagos nos cinemas da cidade. Falava-se de esportes, basicamente futebol, e isso podia propiciar eventuais discussões encerradas com as conclusões a que invariavelmente conduz esse tipo de debate, ou seja, nenhuma.

Embora a confraria em sua origem e desenvolvimento fosse induzida pela aproximação e semelhança de hábitos, gostos e preferências dos que a compunham, o caráter plenamente aberto da esquina não deixava de juntar pessoas de personalidades e comportamentos diferentes. Por isso havia grupos dentro de um grupo, ainda que prevalecessem alguns elementos que mantinham o agrupamento geral. Os maledicentes sempre tinham novidades sobre a vida dos outros. Os intelectuais da cultura de almanaque caprichavam na retórica para dizer o óbvio que, supostamente, só eles sabiam. Propunham-se charadas. Os “desbocados” só abriam a boca para xingar, de preferência com alusão à mãe de alguém, e a sua “pagava o pato” quando o ofendido resolvia replicar.

A esquina não é mais necessária. Há outros meios de interagir. Existe um “porém”: a palavra escrita exige cuidados e técnicas não comuns à linguagem coloquial. Nesta, sem expressão corporal, modulação de voz e emoção apropriadas, sem a possibilidade de readequação imediata de uma frase, a palavra pura e simples pode mais confundir que comunicar.

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