ARTIGO

“Genocídio à vista!”: o Brasil sob o domínio dos comensais da morte

*André Victor Cavalcanti

Thomas Mann, famoso romancista alemão, autor, dentre outros, do livro “A Montanha Mágica”, buscou desesperadamente alertar a sociedade alemã sobre o perigo da ascensão nazista. Foi em vão. Mas ele seguiu sua vida com a consciência tranquila. Aquela tranquilidade e paz consciencial de quem desempenhou seu dever. Pois bem, caro leitor e cara leitora, aqui busco também cumprir o meu dever. Como todo cidadão minimamente informado, venho acompanhando há alguns meses o desenrolar da pandemia que se abateu sobre o mundo. Os seres humanos sofrem hoje uma agressão incondicional e generalizada por outra espécie em esfera planetária. Sim, o vírus é uma outra espécie de “ser vivo”, que nos ataca agora globalmente.

Como informa a reportagem publicada na BBC-Brasil com título de “Coronavírus: o que diz modelo matemático que levou Reino Unido a mudar radicalmente combate à covid-19”, os Estados nacionais desenvolveram três estratégias distintas para enfrentar nosso inimigo invisível: a supressão, a mitigação e a inação. A supressão foi a estratégia adotada pela China, radicalizando o isolamento social, decretando o fechamento de fronteiras, paralisando um amplo espectro de atividades econômicas.

A mitigação foi a utilizada na maioria dos países, sob a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS). A ideia, hoje amplamente conhecida, é controlar a velocidade do contágio, buscando achatar a curva da contaminação para evitar o colapso do sistema de saúde. Para tanto, paralisam-se atividades comerciais consideradas não essenciais e orienta-se que as pessoas fiquem em casa. Mas temos ainda a estratégia da Inação.

Alguns países tentaram, de forma mais explícita ou menos explícita, seguir esse procedimento. Dentre eles, estão a Itália, o Equador, o Reino Unido e os EUA. A tática consiste no Estado não fazer nada diante da pandemia, acreditando que as defesas naturais das pessoas produziriam anticorpos, tornando a população imune ao vírus. Os países citados mudaram o caminho tardiamente. Perceberam por simulações matemáticas que os custos econômicos e em vidas seria muito superior do que no caso da utilização das estratégias de Supressão e Mitigação. Os resultados podem ser vistos por aqueles que ligam a televisão, assistem os noticiários e não se informam apenas pelos grupos de whatsapp: uma imensa calamidade pública. Nações com populações dilaceradas, quem não tem para onde encaminhar os corpos de seus familiares, mortos em casa pois também não havia mais vagas em hospitais. Países inteiros colocados diante do dilema de escolher quais vidas priorizar.

Vale salientar, que em situações “normais” esse tipo de escolha já é uma realidade em muitos países não desenvolvidos economicamente ou em desenvolvimento, mas nunca é uma escolha fácil. Diante do dilema, o médico nega o juramento de Hipócrates, tendo que escolher entre dois pacientes. Não se engane, caro leitor, ele volta para a casa destruído. A lembrança daqueles que ele escolheu morrer vai acompanhá-lo pelo resto de sua vida. Se não for assim, estaria negando sua natureza humana e toda forma de compaixão. Ele não deveria nem ser médico. O monstro que nele habita já teria vencido faz tempo.

Mas vamos à análise do peculiar caso brasileiro. De início, o nosso ministério da Saúde adotou um alinhamento com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi escolhida assim a estratégia da Mitigação. Os brasileiros e brasileiras foram então orientados para permanecerem em suas casas. A tática, por algumas semanas, deu resultado. Começamos a achatar a curva. Adiamos o pico de contágio. Estávamos controlando a velocidade da contaminação para evitar o colapso do sistema de saúde.

Mas o que houve, então? Aqui entra em cena toda a peculiaridade do caso brasileiro. O presidente do nosso país desde o início da crise atuou para que o Estado brasileiro adotasse não a Mitigação, mas a Inação como estratégia de combate à epidemia do novo coronavírus. De todas as formas, com palavras e exemplos, o presidente Jair Bolsonaro procurou sabotar a orientação do seu próprio Ministério da Saúde. Foi a passeatas e atos públicos. Formou aglomerações até em uma padaria. O ápice do enfrentamento foi um pronunciamento à nação por via de rádio e TV. No discurso ele lança mão de um amplo espectro de materiais negacionistas. Minimizou a ferocidade do vírus, chamando de gripezinha. Alçou a cloroquina ao pódio das soluções mágicas e milagrosas, assim como fez o presidente dos EUA, Donand Trup.

Com a guerra entre Bolsonaro e Mandetta deflagrada, a máquina de propaganda bolsonarista foi amplamente mobilizada para defender a posição da Inação. Foram despejados nas redes sociais e nos grupos de whatsapp dos brasileiros e brasileiras uma enorme profusão de materiais. Chama a atenção a diversidade de gêneros textuais, desde aqueles aparentemente “amadores” como textos e vídeos ditos “caseiros”, até os mais elaborados, como charges, caricaturas e vídeos com produções nitidamente editadas por profissionais de comunicação social.

Ficam aqui algumas questões ainda sem resposta: quem produziu esses matérias de propaganda bolsonarista em defesa de posições negacionistas sobre a pandemia mundial? Que agência, grupo ou pessoal é responsável por sua articulação? E ainda, quem financia o trabalho desses profissionais?

O resultado da atuação do presidente da República, associado a toda a máquina de propaganda bolsonarista a serviço do negacionismo, foi o relaxamento do isolamento social por parte significativa da população. A curso de contágio, que vinha em um quadro promissor de achatamento, começou uma guinada em busca do pico. É muito provável a possibilidade de vivenciarmos nas próximas semanas no Brasil as mesmas cenas dramáticas vistas em outros países que secundarizaram a mitigação. A demissão do ministro da Saúde representou mais um passo no sentido da adoção da inação como estratégia do Estado Brasileiro.

Quero esclarecer, caro leitor e cara leitora, que de fato, a adoção da inação tem fundamentos históricos. Vou aqui trazer dois exemplos da História Contemporânea. Essas ocorrências explicitam bem as ideias, subterrâneas, mas soberanas, que sustentam o discurso manifesto de Bolsonaro e do bolsonarismo. Podemos encontrar a primeira delas no pensamento de Herbert Spencer. Para o famoso intelectual britânico do século XIX, as epidemias traziam no fundo um processo purificador. Através dela, a sociedade tornava-se mais robusta, pois eliminava os “doentes, malformados e os menos rápidos ou fortes”. Seria assim um princípio natural vigente no reino animal no qual os seres humanos também estariam submetidos. No fundo, a ação seria benéfica porque seriam “os desregrados e debilitados as vítimas de uma epidemia”.

As formulações teóricas como as de Spencer foram apropriadas por um determinado governante do século XX. Muito popular em sua contemporaneidade, contou com o apoio de amplas camadas sociais de seu tempo. Igrejas, partidos políticos, empresários, juristas, intelectuais, muitos convergiram para as suas bandeiras. Ele fora assim, chamado pelos seus governados sob o título o “Condutor”, o “Guia”, o “Líder”, em uma tradução aproximada da expressão. Mas acho que o “Mito” poderia aproximar também o sentido do termo para seus contemporâneos. Antes de ser eleito, ele escreveu um livro com o título de Minha Luta. Nele defendeu que a ação política, entendida como a luta de um povo pela sua existência, era norteada por uma pedra angular, “(…) por um princípio férreo: o mais fraco cai para que o forte ganhe a vida”.

Bom, caro leitor e cara leitora, me sinto na obrigação de informar que o sistema de pensamento que estamos tratando foi denominado de darwinismo social. Foi amplamente utilizado desde o século XIX, mas como estamos vendo, tem penetrações mundo afora na atualidade. O darwinismo social foi apropriado em diversas ocasiões no século XX, sempre para defender o indefensável sob o ponto de vista da ética. Um dos líderes que se apropriou de seus fundamentos fora esse “Condutor” que vos falei. O dito “Fuhrer”, para usar a expressão em sua língua original, chamava-se Adolf Hitler.

Mas você, caro leitor ou cara leitora, poderia argumentar que ninguém ao defender a inação como estratégia, o faz a partir do darwinismo social. Concordo. Talvez, explicitamente, não. Mas é justamente esse sistema de pensamento, essa forma de pensar característica de raciocínios hierárquicos, que representa os pilares da posição da Inação. Bolsonaro, e todos os defensores da inação do Estado como estratégia para o enfrentamento da pandemia, sabe que ao deixar o vírus com livre acesso a população brasileira acarretará muito mais mortes. Contudo, para ele essas mortes serão de vidas com uma importância menor.

Como disse no seu pronunciamento sobre a recente demissão do ministro da Justiça, Bolsonaro acredita que a vida do presidente da República vale mais do que outras. Um ato falho ao explicitar, como dizia anteriormente, o que está subterrâneo, mas é soberano. No fundo, para pessoas como Bolsonaro e seus bolsonaristas, as vidas de idosos ou portadores de comorbidades valem menos. Para Bolsonaro, a partir de um olhar panorâmico sobre a sociedade como um todo, o maior número dessas vidas perdidas no fundo vai aliviar um peso para os mais jovens e aptos ao trabalho. Lembram o que o atual presidente falou sobre os pacientes de HIV?

Para finalizar, caro leitor e cara leitora, quero deixar aqui algumas perguntas. Os outros poderes da nossa República serão cúmplices da adoção da estratégia da inação pelo Estado Brasileiro? Nossa sociedade permitirá isso? Se não fizermos nada, o Brasil continuará, em plena pandemia, sob o domínio dos comensais da morte.

*Coordenador do Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA/UERN)

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