O rapto dos cadáveres – Parte I
Em minhas andanças pelos sertões do Nordeste do Brasil acompanhando Paulo Gastão em suas buscas por remanescentes do cangaço – dai minha paixão pelos estudos sobre beatos e cangaceiros -, me deparei com situações inusitadas, histórias e estórias que dariam para escrever um best-seller.
Numa das várias oportunidades que estive nos sertões da Bahia, lembro-me de um sábado do mês de maio de 1997, apesar da estiagem, chovia e fazia frio. Enquanto Paulo entrevistava um remanescente do cangaço, me despertou a curiosidade de conversar com um senhor que estava sentado numa cadeira de balanço do outro lado da rua observando todo aquele movimento na residência do vizinho da frente. Me identifiquei e perguntei se poderia ficar em sua companhia enquanto meu amigo executava seu trabalho. Concordou, mandou buscar um tamborete na sala e me serviu um café, forte e amargo. Não me disse seu nome, apenas falou que todos na cidade o chamavam de “Coveiro” e tinha 91 anos, explicou a origem do apelido, vinha de uma família com tradição nesta profissão, não se importava com o apelido e achava divertido a forma carinhosa como as pessoas o tratavam.
Conversamos sobre vários assuntos, e claro, não poderia começar uma prosa sem falar de chuva e seca. A conversa foi se prolongando e cada assunto puxa outro até chegarmos em suas memórias do tempo de criança quando acompanhava seu pai no trabalho de coveiro da cidade vizinha. Como o tempo já estava adiantado e Paulo já havia concluído sua tarefa matinal, ficou acertado o retorno no outro dia para a conclusão do trabalho, me despedi de Coveiro e acertamos continuar nossa conversa no dia seguinte.
No dia seguinte fui direto para sua residência, sendo recebido com um largo sorriso e uma mesa farta com café, bolo, tapioca e biscoito. Me senti à vontade entre seus familiares. Coveiro foi logo perguntando se eu estava com tempo para ouvi-lo e, de pronto respondi que sim.
O que vou relatar a partir de agora é uma memória trágica e bizarra, porém, segundo Coveiro é pura verdade. Ele tinha 13 anos, morava com pai, mãe, três irmãos e uma irmã, família pequena para a época, porém justificou que havia perdido cinco irmãos para a “Peste”. Depois fiquei sabendo que a “Peste” que se referia se tratava na verdade da Gripe Espanhola que assolou o mundo entre os anos de 1918 e 1920. Durante todo o ano de 1919 o pai de Coveiro teve o trabalho dobrado por conta do número de mortes provocadas pela Gripe Espanhola, por isso passava dias sem visitar a família e não sabia explicar para a família por que estava morrendo tanta gente.
Imaginemos milhares de pessoas, a grande maioria sem alfabetização, no sertão diante de uma pandemia. Cidades sem a menor estrutura de saúde e governo que só liberava recursos aos prefeitos que fossem aliados políticos. Médicos, autoridades públicas e sanitárias reagiam de forma diferente diante do avanço da pandemia. Opiniões contrárias, orientações que na maioria das vezes mais confundiam que esclareciam, medidas insuficientes e despreparo na forma de lidar com a pandemia. Setores empresarias aliados aos governos estavam mais preocupados com a economia do que com a saúde pública, a expansão da pandemia ameaçava o comércio de Salvador e cidades de médio porte do estado e isso não era bom para os negócios da elite baiana. Se fazia necessário a preservação da imagem da cidade, e de seu porto, o principal espaço de transações comerciais não poderia ter sua imagem maculada com doença contagiosa. Admitir a pandemia, seria ampliar ainda mais a crise no comércio da capital e refletiria também em outras cidades do estado.
A imprensa sempre à serviço da elite dominante pressionava médicos e autoridades públicas a negar ou reduzir os efeitos da pandemia. As cidades baianas não foram atingidas apenas pela gripe espanhola, some-se às parasitoses, doenças venéreas, tuberculose, malária, febre amarela, dentre outras, contribuindo para o aumento da mortalidade. Diante de um quadro catastrófico e de posturas irresponsáveis dos gestores, o que esperar de uma parcela da população sertaneja? Além da vida marginal, a falta de conhecimento dos efeitos da doença e a obediência cega aos chefes políticos locais muita gente se submetia as mais degradantes situações para agradar as autoridades, até mesmo cometer alguma atitude criminosa.
Com a Gripe Espanhola o número de sepultamento cresceu consideravelmente e isso causava preocupação às autoridades locais, primeiro porque tinha que aumentar o número de trabalhadores nos cemitérios, segundo porque a cidade ficava mal afamada e prejudicava os negócios. Assim como ocorria na capital, no interior também as elites dominantes buscavam omitir a gravidade da pandemia e minimizar os efeitos. Mas como conseguir convencer a população, se a quantidade de sepultamentos crescia a cada dia?
É neste cenário que entra o relato de Coveiro nos contando a história que presenciou ao lado de seu pai em meados de setembro de 1919.